segunda-feira, 30 de maio de 2011

COM A DEVIDA VENIA

Com a devida venia, abro um parêntese nos "causos" para trazer aqui um julgado que me emocionou, eu que trabalho tanto em causas gratuitas e por vezes tenho meus pedidos de gratuidade de justiça negados. Por existirem juristas como esse Desembargador é que ainda acredito na justiça e no bem que posso trazer às pessoas com a minha profissão.


Justiça Gratuita - Desembargador José Luiz Palma Bisson, Agravo de Instrumento nº 1001412-0/0 – 36ª Câmara, TJSP

“É o relatório. Que sorte a sua, menino, depois do azar de perder o pai e ter sido vitimado por um filho de coração duro - ou sem ele -, com o indeferimento da gratuidade que você perseguia. Um dedo de sorte apenas, é verdade, mas de sorte rara, que a loteria do distribuidor, perversa por natureza, não costuma proporcionar. Fez caber a mim, com efeito, filho de marceneiro como você, a missão de reavaliar a sua fortuna.

Aquela para mim maior, aliás, pelo meu pai - por Deus ainda vivente e trabalhador - l egada, olha-me agora. É uma plaina manual feita por ele em paubrasil, e que, aparentemente enfeitando o meu gabinete de trabalho, a rigor diuturnamente avisa quem sou, de onde vim e com que cuidado extremo, cuidado de artesão marceneiro, devo tratar as pessoas que me vêm a julgamento disfarçados de autos processuais, tantos são os que nestes vêem apenas papel repetido. É uma plaina que faz lembrar, sobretudo, meus caros dias de menino, em que trabalhei com meu pai e tantos outros marceneiros como ele, derretendo cola coqueiro - que nem existe mais - num velho fogão a gravetos que nunca faltavam na oficina de marcenaria em que cresci; fogão cheiroso da queima da madeira e do pão com manteiga, ali tostado no paralelo da faina menina.

Desde esses dias, que você menino desafortunadamente não terá, eu hauri a certeza de que os marceneiros não são ricos não, de dinheiro ao menos. São os marceneiros nesta Terra até hoje, menino saiba, como aquele José, pai do menino Deus, que até o julgador singular deveria saber quem é.
O seu pai, menino, desses marceneiros era. Foi atropelado na volta a pé do trabalho, o que, nesses dias em que qualquer um é motorizado, já é sinal de pobreza bastante. E se tornava para descansar em casa posta no Conjunto Habitacional Monte Castelo, no castelo somente em nome habitava, sinal de pobreza exuberante.

Claro como a luz, igualmente, é o fato de que você, menino, no pedir pensão de apenas um salário mínimo, pede não mais que para comer. Logo, para quem quer e consegue ver nas aplainadas entrelinhas da sua vida, o que você nela tem de sobra, menino, é a fome não saciada dos pobres.

Por conseguinte um deles é, e não deixa de sê-lo, saiba mais uma vez, nem por estar contando com defensor particular. O ser filho de marceneiro me ensinou inclusive a não ver nesse detalhe um sinal de riqueza do cliente; antes e ao revés a nele divisar um gesto de pureza do causídico. Tantas, deveras, foram as causas pobres que patrocinei quando advogava, em troca quase sempre de nada, ou, em certa feita, como me lembro com a boca cheia dágua, de um prato de alvas balas de coco, verba honorária em riqueza jamais superada pelo lúdico e inesquecível prazer que me proporcionou.

Ademais, onde está escrito que pobre que se preza deve procurar somente os advogados dos pobres para defendê-lo? Quiçá no livro grosso dos preconceitos...

Enfim, menino, tudo isso é p ara dizer que você merece sim a gratuidade, em razão da pobreza que, no seu caso, grita a plenos pulmões para quem quer e consegue ouvir.

Fica este seu agravo de instrumento então provido; mantida fica, agora com ares de definitiva, a antecipação da tutela recursal. É como marceneiro que voto.”

(Des. JOSÉ LUIZ PALMA BISSON -- Relator Sorteado)

segunda-feira, 28 de março de 2011

Quinta-feira, 11 horas da manhã

Fórum, dia de mutirão, aguardando ser chamada minha próxima audiência, sento um pouco na sala de advogados da OAB. Chega a Sra. Rita, seu esposo Sr. Ricardo e um rapaz chamado Caio.
- Doutora Lu, tenho uma casa alugada, agora quero vender a esse rapaz mas a inquilina se recusa a desocupar.
- Isso é muito simples. Traga a cópia do contrato de locação que tomaremos as providências: notificar, dar um prazo para ela desocupar...
- Não tem contrato. É de boca.
- A senhora tem uma pessoa ocupando sua casa sem contrato?
- Ela ia ficar somente 3 meses.
- E está há quanto tempo?
- Faz 7 anos que peço e ela não sai.
- E a senhora não fez nada até hoje?
- Fiz, todo dia eu vou lá pedir pra ela sair.
- Há 7 anos?
- Sim.
- Bom, nesse caso, a senhora traga a documentação da casa para providenciarmos uma ação de reintegração de posse.
- A casa não tem documento nenhum.
- Não? A gente dá um jeito. Vou lhe fornecer uma relação de documentos...
- Doutora, eu não tenho tempo, eu e meu marido vamos embora daqui a uma semana pro Norte. Eu só quero vender a casa pra esse rapaz.
- Ah, a senhora quer passar o pepino adiante, que dar o abacaxi pra esse rapaz descascar, então... fique sabendo que sua inquilina tem todos os requisitos para ajuizar uma ação de usucapião e sair vitoriosa. Pois ela, além do lapso temporal exigido por lei, ainda detém a posse mansa e pacífica.
- Aí eu mato ela.
- Mas por que somente agora, a uma semana de ir embora, a senhora veio tomar providências?
- Porque me disseram que era só o adEvogado escrever uma cartinha pro juiz que ele mandava a miserável sair da casa...
Esqueceram de dizer a ela que além de escrever a carta, o "adEvogado" Hary Potter fala "everte statum" empunhando a varinha, chama a fada Sininho e seu pozinho mágico, a Emília do sítio e seu pó de pirlimpimpim e sobe todas as escadarias de todas as igrejas do Brasil nadando, vestido de coelhinho da páscoa e com gorro de Papai Noel.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Quarta, 9 horas da noite.



Estava com minha família no carnaval, no meio da rua, em frente a um palco onde rolava muito frevo.
Celular toca e Luciene, da audiência da terça seguinte fala do outro lado:
- Doutora, peguei o número do processo, anote.
- Mande por torpedo, não tenho como anotar.
- 000...
- Luciene, por favor, envie um torpedo com o número, não tenho como anotar agora.
- 1234...
- MANDE O NÚMERO VIA TORPEDO! (aos berros, até o maestro olhou para trás, estávamos no gargarejo, chamado pelos mais chiques de frontstage)
- Eu não sei mandar torpedo não.
- Ah, sabe, é do mesmo jeito de quando manda para o seu namorado. Até mais!
Desliguei sem cerimônia.
Duas horas mais tarde, ainda no mesmo local, recebo um torpedo com o número do processo.
Em seguida, outro com: "doutora, 'mim' 'esquessi' de 'diser' que meu 'eis'-marido comprou um carro 3 meses antes de 'si' casar comigo, eu tenho direito?"
Mais um: "doutora, tenho direito aos 'móvis' da casa?'
E segue: "doutora, 'cuantas' 'testemuinhais' preciso levar na 'aldiensia'?"
Bom, já aprendeu a mandar torpedo, agora só falta aprender a escrever certo.



sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Terça, 10 horas da noite.





Em casa, me preparando para dormir. Celular toca insistentemente. Depois de 9 vezes, resolvo atender. A cobrar e não completa... não reconheço o número. Preocupo-me com a insistência e resolvo retornar. Um homem atende:
- Oi "dotôra", "né" nada demais não, viu?
- Quem fala, por favor?
- "Ói dotôra, que hora que é pá levá o hômi"? (frase que só entendo depois da quarta ou quinta vez)

- Como, senhor? Que homem? Quem está falando?
- "Uômi, dotôra, que a sim-ora disse que é pá levá"...
- Veja bem, eu não sei do que se trata, nem de quem se trata...
- "É uôôôôômi, dotôraaa, ôôôxi... que hora é pá levá ele lá"? (bravo!)
- Meu senhor, esse homem tem nome? E lá, é onde?
- "Óli, dotôra, eu só quero saber a hora que é pá levá uômi lá... a sim-ora tá intendeno não"?

- Não, me desculpe, mas nem sei que homem é, nem que horas ele deve ir pra que lugar...
- "Oxe, intão dexe"...
(desliga na minha cara)

Segui acreditando que foi um trote...

Segunda, 10 horas da manhã


Estava sozinha no escritório.
No meio de um raciocínio, elaborando uma petição, a campainha toca. Olho lá de cima, um rapaz que quando me vê, vai logo se identificando:
- Oi doutora, meu nome é Ari, foi Gino que me mandou.
Segura pela indicação antecipadamente comunicada, desço as escadas para abrir.
- Bom dia, doutora.
- Bom dia, Ari, em que posso ajudar?
- A loja mandou uma fatura pra eu pagar (mostra a fatura). Tá certo isso?
- Você comprou?
- Comprei.
- O produto foi esse e o valor também?
- Foi.
- Então está certo sim!
- Ah, tá, disseram que aqui a senhora resolvia isso... (pega a fatura com rispidez das minhas mão e vai embora batendo o portão)

Domingo, 5 horas da tarde.


Estávamos eu e Lídia, minha filha de 4 anos, numa festinha de aniversário de um priminho.
Celular toca, música de Lady Gaga beeem alta, que o meu outro filho, Hugo, de 8, colocou sem eu saber. Com um riso amarelo e procurando um buraco para enfiar a cabeça, atendo...
- Alô!
- Doutora Luiza?
- Pois não?
- É Claudilene, que a senhora resolveu o negócio da pensão.
- Pode falar, D. Irene (tampando o outro ouvido por conta do barulho da festa)
- É CLAUDILENE, DA PENSÃO DE KLEBSON
- Sim, diga, está tudo correndo bem? a pensão está em dia? a visitação também?
- Sim, ele tá cumprindo o que a juíza mandou direitinho, o desgraçado.
- Então, no que posso ajudar?
- Quando o menino vai pra casa dele, não come quase nada porque só gosta de tomar leite com chocau e ele não quer comprar. Eu quero que a senhora ligue pra ele mandando ele comprar a lata de chocau.
- Mande na mochila da criança.
- Não, doutora, a senhora vai mandar ele comprar, anote aí o número dele...
(ah... que pena... o sinal caiu...)